A Cobrança de Taxa de Serviço de Limpeza Urbana pelo Ente Municipal: O que a Constituição Federal de 1988 realmente diz?

Resenha: O texto destaca a detalhada repartição da competência tributária entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, com a finalidade de enfatizar a criteriosidade da Constituição Federal de 1988 sobre o assunto: tributos. A taxa de serviço é a espécie tributária que se encontra sob o olhar deste texto, especialmente, a taxa de serviço de limpeza urbana instituída pelo município de Várzea Grande/MT. Utiliza-se como instrumento de fundamentação da presente análise, a teoria da Regra-Matriz de Incidência Tributária. Ao debruçar sobre a Taxa de Limpeza Urbana instituída pelo município de Várzea Grande/MT, é possível perceber, de maneira cristalina, a inadequação entre a hipótese de incidência e a base de cálculo. A inadequação que será fundamentada neste texto, parte do pressuposto de que a base de cálculo deve confirmar a hipótese de incidência, a fim de identificarmos o enquadramento do aludido tributo na moldura constitucional prevista no artigo 145, inciso II, da Constituição Federal de 1988.

1-) O Propósito Constitucional de uma Rígida Repartição de Competência Tributária.

O legislador constituinte de 1988 fora minucioso quanto ao regramento constitucional das competências tributárias. Aliás, na história do federalismo brasileiro, conforme afirma Luís Eduardo Schoueri[1], as constituições sempre observaram a opção por uma rígida repartição de competências tributárias. Desse modo, é possível afirmar a presença de uma cultura constitucional tributária rígida no federalismo do nosso país.

Esse rigor legiferante com as competências tributárias se origina do firme propósito de afastar o conflito de competências entre os próprios entes políticos, bem ainda, de impedir a instituição ou cobrança de tributos sobre fatos não pertencentes às materialidades delimitadas constitucionalmente.

Essa dupla garantia tem o condão de limitar o poder de tributar da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e ainda, de garantir ao contribuinte brasileiro um mínimo de previsibilidade jurídica, com o intuito de alcançar a observância do Sobreprincípio da Segurança Jurídica e do Princípio do Estado Democrático de Direito.

Aliado a esse argumento e sob o qual me arvorarei para debater o tributo Taxa de Serviço Público, está a norma da Regra-Matriz de Incidência Tributária, que possui a finalidade de recortar a norma tributária à luz da constituição e legislação pátria.

2-) A Regra-Matriz de Incidência Tributária e a sua Importância no Estudo da Constitucionalidade dos Tributos.

Com o objetivo de explicitar a norma da Regra-Matriz de Incidência Tributária, recorrerei aos ensinamentos do Professor Paulo de Barros Carvalho, o qual leciona que “toda norma jurídica tem estrutura lógica de um juízo hipotético, em que o legislador (sentido amplo) enlaça uma consequência jurídica (relação deôntica entre dois ou mais sujeitos), desde que acontecido o fato previsto no antecedente”, a regra-matriz de incidência concebe uma estrutura jurídica mínima, porém, completa, a qual o referido Mestre denomina de “mínimo irredutível de manifestação do deôntico”.

Esse “mínimo irredutível de manifestação do deôntico” se constrói a partir de um antecedente normativo, em nosso caso, antecedente tributário, e um consequente normativo tributário, os quais estão estruturados em 05 (cinco) critérios, quais sejam: (i) critério material, (ii) critério temporal, (iii) critério espacial, (iv) critério pessoal (sujeito ativo e sujeito passivo) e (v) critério quantitativo (base de cálculo e alíquota).

Esses critérios objetivam perquirir a natureza jurídica da exação municipal ora analisada, bem como constatar se a norma infraconstitucional (Código Tributário Municipal) está dentro da moldura constitucional.

É nesse contexto que analisaremos o tributo Taxa de Serviço Público, na subespécie Taxa de Limpeza Urbana (TLU), instituída pelo município de Várzea Grande/MT, a fim de concluirmos se de fato a referida norma encontra-se em harmonia com o texto constitucional.

A espécie tributária Taxa de Serviço Público guarda consigo acaloradas discussões doutrinárias e judiciais a respeito da sua instituição e cobrança à luz dos respectivos critérios identificadores da regra-matriz de incidência tributária.

Comecemos pelo fundamento de validade do aludido tributo, o qual se encontra no altiplano normativo brasileiro, especificamente, no inciso II, do artigo 145, da Constituição da República de 1988. Conforme regramento constitucional, duas materialidades ligadas às taxas os entes políticos poderão instituir: (i) taxa de polícia; e, (ii) taxa de serviço público.

Referido tributo fora instituído pelo Município de Várzea Grande/MT, mediante Lei Complementar n. 3.350/2008, cujos serviços submetidos à cobrança, são: (i) coleta, remoção, transbordo e transportes de resíduos domiciliares em um limite de até 40 (quarenta) litros / dia e de resíduos sólidos originários de estabelecimentos de prestação de serviços, comerciais, até 200 (duzentos) litros/dia, ficando o remanescente, neste caso, sob responsabilidade do contribuinte; (ii) destinação final dos resíduos sólidos domiciliares e comerciais; e, (iii) varrição de vias, coleta de entulhos, desobstrução do sistema de drenagem, limpeza de córregos.

À luz da materialidade acima, constrói-se a seguinte hipótese: se houver serviço de coleta de lixo, remoção, transbordo e transportes de resíduos domiciliares, dever-se-á pagar taxa de limpeza urbana. Mas não é somente com a hipótese de incidência que se faz incidir o tributo no plexo da norma individual e concreta, urge que, antes, o consequente normativo incida sobre a hipótese, no qual se encontra o critério quantitativo, portanto, a base de cálculo.

Assim, à luz da Lei Complementar n. 3.350/2008, o critério quantitativo do tributo Taxa de Limpeza Urbana (TLU) deve ser calculado da seguinte forma:

Art. 4º A Taxa de Limpeza Urbana – TLU, será calculada pelo resultado da multiplicação entre o Valor Unitário de Referência (VUR), o Fator de Localização (Floc) e o Fator de Porte (Fpor) de acordo com o Anexo 1 da presente lei, e conforme especificado a seguir: TCRS = VUR x Floc x Fporte

Onde:

I – TLU – Taxa de Limpeza Urbana;

II – VUR – Valor Unitário de Referência corresponde ao rateio do custo total dos serviços, pelo respectivo número de cadastros tributáveis (unidades autônomas), considerando-se os pesos relativos aos fatores utilizados na fórmula e será publicado anualmente pelo Chefe do Poder Executivo; (Regulamentado pelos Decretos nº 1/2016; nº 19/2017, nº 21/2018 e nº 60/2022)

III – Fator de Localização – Floc: é dado em função do setor cadastral em que o imóvel se localiza;

IV – Fator de Porte – Fporte: é dado em função do potencial de produção de lixo, definido por faixas de tamanho da edificação e as características dos resíduos produzidos, expressos pelo uso do imóvel (grifo nosso).

De acordo com Paulo Aires Barreto, “é no aspecto material da hipótese de incidência que, por seus atributos, encontramos a suscetibilidade de apreciação e dimensionamento, com vistas à estipulação do objeto da prestação”[2]. Nesse sentido, a base de cálculo é um critério indispensável para a composição do consequente normativo da Regra-Matriz de Incidência Tributária, pois é nela que se identifica “os atributos dimensíveis do aspecto material da hipótese de incidência”[3].

É a partir da base de cálculo que se mede as proporções da hipótese de incidência, portanto, do critério material da regra-matriz. Por esta razão é que boa parte da doutrina brasileira, capitaneada por Paulo de Barros Carvalho, destaca as seguintes funções desempenhadas pela base de cálculo:

a) medir as proporções reais do fato, ou função mensuradora;

b) compor a específica determinação da dívida, ou função objetiva; e,

c) confirmar, infirmar, ou afirmar o correto elemento material do antecedente normativo, ou função comparativa[4].

Assim, sob a análise do critério quantitativo (base de cálculo e alíquota), no tocante à base de cálculo, se denota que a moldura constitucional não se encaixa no tributo Taxa de Limpeza Urbana (TLU), instituída pelo município de Várzea Grande/MT, conforme restará demonstrado a seguir.

Extrai-se do texto do artigo 3º da Lei Complementar 3.350/2009, que a base de cálculo e as alíquotas da taxa de limpeza urbana será: “o custo do serviço utilizado ou colocado à disposição do contribuinte, e será calculada em função da localização, do tipo de ocupação e do porte do imóvel”, atendendo aos critérios estabelecidos no artigo 4º da mesma lei, conforme anteriormente mencionado.

Em detida análise à base de cálculo instituída, denota-se claramente um completo distanciamento com a materialidade da hipótese de incidência constitucional da Taxa de Serviço (artigo 145, II, CF/88), a qual a Taxa de Limpeza Urbana (TLU) se origina, uma vez que o “tamanho da edificação” não guarda nenhuma correspondência com o serviço de limpeza urbano prestado, o qual se restringe à coleta e remoção de lixo produzida.

Quando se aplica a função comparativa da base de cálculo – qual seja, “confirmar, infirmar, ou afirmar o correto elemento material do antecedente normativo” –, o que se extrai do tributo Taxa de Limpeza Urbana (TLU) é justamente a infirmação do elemento material prestar serviços de coleta e remoção de lixo, uma vez que não é possível se identificar a compatibilidade normativa entre o tamanho do imóvel e o serviço público de coleta de lixo prestado.

A municipalidade presume que o contribuinte que possui um imóvel maior, produzirá mais lixo a ser coletado e removido, incidindo a respectiva alíquota sobre a totalidade da área. No entanto, a legalidade tributária material não coaduna com presunções. A título de exemplo: um imóvel maior, onde residem duas pessoas, presume-se que produz mais lixo do que um imóvel menor, onde residem cinco pessoas. Ocorre que, a produção de lixo está intrínseca ao ser humano e não ao imóvel, não sendo possível identificar de forma abstrata a incidência.

Nessa toada, merece destaque o julgamento do Recurso Extraordinário 571.241, de relatoria do ministro Joaquim Barbosa:

CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. TAXA. SERVIÇOS PÚBLICOS. COLETA E REMOÇÃO DE LIXO. CARACTERIZAÇÃO DA ABRANGÊNCIA DO SERVIÇO COMO INESPECÍFICO E INDIVISÍVEL. NECESSIDADE DO EXAME DA RESPECTIVA BASE DE CÁLCULO. RAZÕES DE AGRAVO REGIMENTAL INSUFICIENTES. QUESTÃO DE FUNDO. SÚMULA VINCULANTE 19.

1. O exame da possibilidade de o serviço público ser destacado em unidades autônomas e individualizáveis de fruição não se esgota com o estudo da hipótese de incidência aparente do tributo. É necessário analisar a base de cálculo da exação, que tem por uma de suas funções confirmar, afirmar ou infirmar o critério material da regra-matriz de incidência. As razões de agravo regimental, contudo, não indicam com precisão como a mensuração do tributo acaba por desviar-se da prestação individualizada dos serviços de coleta e remoção de lixo.

2. “A taxa cobrada exclusivamente em razão dos serviços públicos de coleta, remoção e tratamento ou destinação de lixo ou resíduos provenientes de imóveis, não viola o artigo 145, II, da Constituição Federal” (Súmula Vinculante 19). Agravo regimental ao qual se nega provimento.

(STF, Recurso Extraordinário 571.241, Ministro Relator Joaquim Barbosa, Segunda Turma, Data do Julgamento: 20/04/2010, Data da Publicação: 02/06/2010 – grifo nosso).

Percebe-se que há um claro desvirtuamento da natureza entre espécies tributárias, no caso, entre a taxa e o imposto. Tal presunção fere de morte o princípio da legalidade tributária material, principalmente, quando lançamos o nosso olhar para o inciso II c/c. os §§1º e 2º, todos do artigo 145, da Constituição da República de 1988:

Artigo 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:

II – taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição;

§1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.

§2º As taxas não poderão ter base de cálculo própria de impostos.

Ao atribuir a base de cálculo vinculada ao tamanho do imóvel, o ente político municipal esquece-se de observar a estrita legalidade tributária prevista constitucionalmente para o tributo taxa de serviço. Ao vincular à base de cálculo o tamanho do imóvel, o município acaba por imiscuir naquela a base de cálculo correspondente aos impostos, ultrapassando os limites do poder de tributar estampados na Constituição de 1988.

3-) Conclusão.

Em conclusão, quando o município gradua o critério quantitativo do tributo taxa de serviço, mediante o tamanho do imóvel, a consequência desta decisão política é a indeterminação daquilo que deveria ser determinado para o contribuinte, gerando insegurança jurídica no aspecto da cognoscibilidade.

É por esta razão que “a instituição de um sistema rígido inserto numa República Federativa conduz a uma repartição de competências marcada exatamente por conceitos mínimos, na medida em que os mesmos fatos não poderão ser tributados por mais de uma pessoa política de direito interno[5].

Desse modo, independente do ente político instituidor do tributo taxa de serviço, podemos afirmar que a inobservância das regras de competência provoca a invalidade formal do ato normativo ou material da norma, uma vez que, nas palavras de Humberto Ávila:

deixaria o direito de guiar a conduta para ser por ela guiado, em uma inversão que solaparia por completo sua qualificação como um discurso constituído de entidades de linguagem com função prescritiva ou diretiva, isto é, utilizando para influir no comportamento de seus destinatários[6].


Thiago de Oliveira Freitas, é sócio fundador do escritório Freitas e Garcia Sociedade de Advogados. Mestrando e Especialista em Direito Tributário pelo IBET.


[1] Schoueri, Luís Eduardo. Direito Tributário. 11ª edição. Saraiva.

[2] BARRETO, Aires. Base de cálculo, alíquota e princípios constitucionais. 2ª Ed. São Paulo: Max Limonad, 1998. P. 50.

[3] idem.

[4] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. P. 175.

[5] Planejamento Tributário – Limites Normativos, 1ª edição, Paulo Ayres Barreto, pg. 56.

[6] Competências tributárias: um ensaio sobre a sua compatibilidade com as noções de tipo e conceito. São Paulo: Malheiros, 2018.

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